Contate-nos
Notícias de destino

'Não tenho medo de ser domesticada', diz Camila Sosa Villada, estrela da Feira do Livro, em São Paulo

Jun 28, 2024 IDOPRESS
A argentina Camila Sosa Villada,que em novo livro afirma que seu “primeiro ato de travestismofoi a escrita” — Foto: Guillermo Albrieu

A argentina Camila Sosa Villada,que em novo livro afirma que seu “primeiro ato de travestismofoi a escrita” — Foto: Guillermo Albrieu

A escritora argentina Camila Sosa Villada desembarca em São Paulo neste sábado (29). Ainda em Córdoba,conversou com o GLOBO por vídeo e se disse ansiosa:

— Antes,as travestis éramos muito maltratadas nos aeroportos,porque viajávamos com documentos de homem. Era difícil explicar em outro idioma que eu era a mesma pessoa da foto. Fiquei com ressaca de viajar,mas vou ficar feliz quando aterrissar — disse.

César Aira: 'A literatura está muito preguiçosa'Páginas ardentes: Atentas às fantasias femininas e ao algoritmo,autoras independentes fazem fama e fortuna com romances 'hot'

No domingo (30),Camila participa d’A Feira do Livro,que ocupa a praça em frente ao Estádio do Pacaembu,em São Paulo,de sábado até o dia 7. Na quarta-feira (3),ela (que também canta e atua) se apresenta no Cine Cortina,também na capital paulista — os ingressos já esgotaram. Vencedora do Prêmio Sor Juana Inés de la Cruz com o romance “Parque das irmãs magníficas”,que retrata uma irmandade de travestis de Córdoba,Camila se consagrou uma das mais festejadas celebridades literárias argentinas.

Agora,está lançando três livros no Brasil: “A namorada de Sandro”,com textos curtos e poéticos; “A viagem inútil”,ensaio que narra como ela se descobriu (ao mesmo tempo) escritora e travesti; e “Teses sobre uma domesticação”,romance protagonizado por uma atriz trans casada com o advogado gay que adota um menino soropositivo e se sente sufocada pela estabilidade da vida burguesa. O livro foi adaptado para o cinema com Camila no papel da atriz e Alfonso Herrera (da banda RBD) como o marido. Durante as filmagens,ela reescreveu o livro.

Ao GLOBO,Camila disse que só volta ao cinema se Pasolini ressuscitar,que gosta de ser misteriosa e que não vão conseguir domesticá-la.

Sexo: Autores brasileiros falam dos desafios de escrever sobre os prazeres da carne

Você diria que desenvolveu uma relação próxima com leitor brasileiro?

Não. Sempre decepcionamos os leitores se nos aproximamos demais. Tento ser misteriosa,não tão acessível. Não só aos leitores,mas também aos amantes e amigos. As redes sociais propõem uma nova forma de comunicação que não respeita a opacidade do outro. Sou amável,autografo livros,sou agradecida e dedicada. Mas não posso responder pelo afeto,pelo ódio ou pela identificação que os leitores sentem.

Entendo que você gere afeto e identificação. Ódio também?

Alguns colegas dizem que é injusto que eu tenha ganhado um prêmio sendo que eles são melhores escritores. Tem uma cota de transfobia aí. É difícil suportar uma travesti que te olha de igual para igual. Acham que temos que baixar a cabeça diante dos outros,que não podemos ser soberbas ou parecer arrogantes.

Todas as letras: Antologia revela como literatura brasileira retratou gays,andróginos e sadomasoquistas entre 1880 e 1950

A personagem atriz de “Teses sobre uma domesticação” se parece com você?

Muito. Sobretudo no que é mais feio. No que é mais bonito eu não sei. Reescrevi o livro enquanto filmava a adaptação. O romance virou uma espécie de para-raios de tudo de maravilhoso ou terrível que acontecia no set. Talvez eu o tenha escrito como uma advertência para mim mesma a respeito do dinheiro e da fama e se isso de fato me interessa.

Você teme a domesticação?

Não. Um ex-companheiro tentou me domesticar e não conseguiu. Antes de eu ser oficialmente travesti,de sair à rua como mulher,meus pais e a escola tentaram. A linguagem também pode ser domesticadora. Sempre me perguntam por que escrevo “travesti” e não “mulher trans”,como se me pressionassem para me identificar corretamente. Não tenho medo de ser domesticada nem pela literatura e muito menos pelos homens.

Como foi atuar no filme e reescrever o livro?

Não piso mais num set de filmagem. A não ser que Pasolini ressuscite. Foi uma experiência espantosa. É raro uma escritora protagonizar um filme baseado no livro que ela escreveu. Acho que só Marguerite Duras fez isso em “O caminhão”. Atuar no filme me permitiu aprofundar no livro a relação da atriz com seu irmão postiço (deixei mais claro que eles se desejam),com o marido (que no set era alguém de carne e osso,com quem eu fazia cenas de sexo) e com o diretor de teatro (que se tornou mais escabrosa).

Bruna Kalil Othero: Quem é a escritora que diz que o Brasil é pornochanchada e Anitta é intelectual

Por que você diz que seu “primeiro ato de travestismo foi a escrita”?

Ambas as coisas começaram como um segredo e nutridas por afetos e situações extremas. As travestis da minha geração estão acostumadas aos extremos. E a literatura é assim: vai da ternura à violência,busca a beleza que existe no meio da feiura. Espero não ofender os escritores,mas entendo que a literatura é um terreno feminino: enche páginas de filhos e não perdoa nada,como uma mãe ou uma amante.

Responder perguntas sobre a questão trans o tempo todo te cansa?

Sim,me cansa. Recentemente,estive em Espanha,França,Itália e Finlândia,e em todo lugar me perguntaram sobre o uso da palavra travesti,se a literatura existe ou não. Estou há cinco anos respondendo as mesmas perguntas (risos)!

O título “A viagem inútil” se refere à “vida que não se escreve”. O que não pode ser escrito?

Escrever é como saltar ao redor de uma dor,tentando não cair no abismo. Não sabemos o que dói tanto dentro de nós,mas podemos falar do que há ao redor dessa dor. García Lorca escreveu que já coisas que não podem ser ditas porque não há palavras para dizê-las. É bonito isso,nos ensina arte da paciência e da perseverança.

Gay assumido e sem medo de comprar brigas: Escritor Lúcio Cardoso é redescoberto e tem diários reeditados

Te perguntam muito sobre o governo de Javier Milei?

Sim (risos)! Estamos todos em risco,não só as mulheres e as minorias. O que está acontecendo me causa repulsa,mas talvez tenhamos que aprender a viver com essa falta de desejo,essa angústia. O que é mais perigoso,e isso não é exclusividade do governo de Milei,é a deterioração da conversa,do diálogo. É terrível.

O que a literatura pode diante disso?

Não sei. Já se escreveu muito sobre injustiça,torpeza humana,crimes,e nada disso deixou de existir. O que a literatura faz é de outra ordem,é uma conversa cara a cara. A literatura faz companhia e exercita os neurônios. Não se pode pedir mais que isso.

Serviço:

‘A namorada de Sandro’

Autora: Camila Sosa Villada. Tradutor: Joca Reiners Terron. Editora: Tusquets. Páginas: 96. Preço: R$ 44,90.

‘A viagem inútil’

Autora: Camila Sosa Villada. Tradutora: Silvia Massimini Felix. Editora: Fósforo. Páginas: 72. Preço: R$ 59,90.

‘Teses sobre uma domesticação’

Autora: Camila Sosa Villada. Tradutora: Silvia Massimini Felix. Editora: Companhia das Letras.Páginas: 224. Preço: R$ 69,90.