Parte da família de Carlos André Veríssimo Cortes: todos são nascidos e criados em Campo Grande — Foto: Leo Martins
GERADO EM: 30/11/2024 - 16:13
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Uma cidade maravilhosa por natureza,mas marcada por contrastes. A realidade do Rio mostra a sua cara quando são analisados dados dos bairros cariocas,produzidos pelo Censo 2022 do IBGE e compilados pelo GLOBO para traçar os muitos perfis dessa metrópole de disparidades. Primeira colocada no Índice de Progresso Social (IPS) medido pela prefeitura,por exemplo,a Barra é recordista de domicílios com muitos banheiros. Em quarto no IPS,o Leblon é o bairro com maior proporção de idosos. Enquanto regiões menos abastadas da Zona Norte,como Acari,Costa Barros,Barros Filho,Maré e Jacarezinho,estão entre as que têm maiores percentuais de crianças de 0 a 9 anos.
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O retrato reflete a desigualdade socioeconômica do município,ressalta a demógrafa Ana Carolina Bertho,professora e pesquisadora da Escola Nacional de Ciências Estatísticas (Ence),do IBGE.
— Assim como o país,o Rio está envelhecendo. Sua população diminuiu,de 2010 para 2022. Mas,quando olhamos com lupa para os bairros,vemos que há grandes desigualdades que se acentuaram. A composição etária,em especial,está muito atrelada à composição socioeconômica. O que não é algo recente — diz,lembrando que,embora a taxa de fecundidade venha caindo,nas áreas mais pobres as mulheres têm mais filhos.
Números da cidade do Rio,segundo o Censo do IBGE — Foto: Editoria de Arte
Quando Os Paralamas do Sucesso chegaram ao topo das paradas com “Óculos”,nos anos 1980,bem que a arquiteta Glória Figueiredo poderia ser personagem do verso que abre a música: “Se as meninas do Leblon não olham mais para mim”. Moradora do bairro desde a infância,ela acompanhou as últimas décadas de mudanças em sua charmosa vizinhança. E viu muitos daqueles garotos e garotas da geração que vivenciou o auge do rock nacional envelhecerem. Hoje,o Leblon é o bairro do Rio com maior proporção de sua população idosa,com 60 anos ou mais: 35,8% de seus 37.709 residentes.
— O Leblon se destaca por ser um bairro menor,com menos turismo e menos carros. As pessoas se conhecem,chamamos o padeiro pelo nome e encontramos amigos na praia para jogar. Isso é qualidade de vida — diz Glória,hoje com 64 anos.
Longevidade: grupo de 60 a 80 anos se encontra às terças e quintas para jogar beach tennis na Praia do Leblon — Foto: Alexandre Cassiano
A arquiteta não perde uma partida de beach tennis com o grupo de amigos — todos com mais de 60 — que se reúne toda terça e quinta-feira na praia.
Bem-estar em área nobre
Mais do que uma forma de socializar,os jogos garantem o bem-estar na opinião da aposentada Clea Malafaia,de 60 anos:
— Jogar na praia é diferente de um clube. Esse contato com a natureza talvez seja o segredo para envelhecer bem.
Depois do Leblon,os bairros cariocas com maiores taxas de idosos são Méier,Paquetá,Ipanema,Flamengo e Copacabana. Em números absolutos,Campo Grande (66.507) e Copacabana (42.203) concentram mais pessoas com 60 ou mais.
Dos 6,21 milhões habitantes do Rio,352.356 vivem em Campo Grande,na Zona Oeste,o bairro mais populoso não só da cidade como de todo o país. Mas,por conta de seu extenso território,parte dele rural,a região tem uma densidade demográfica bem inferior à do município (3.381 contra 5.556 por km²).
Recorrente
Só que não é de hoje que Campo Grande está na frente em número absoluto de moradores. A demógrafa Ana Carolina Bertho lembra que o lugar já estava no topo nos Censos de 2000 e de 2010.
E foi lá que a numerosa família do servidor público Carlos André Veríssimo Cortes resolveu se instalar.
— Viver em Campo Grande é um privilégio. O bairro é afastado do Centro,mas tem tudo. Minha família é grande,somos cerca de 300 pessoas,e todos têm raízes aqui — destaca Carlos,de 48 anos.
Parte da família de Carlos André Veríssimo Cortes: grupo criou raízes em Campo Grande — Foto: Leo Martins
Moram com ele,na Rua do Rádio,a mãe,de 75 anos,a esposa e dois filhos.
— Minha avó,de 95 anos,tem casa perto de nós. O senso de comunidade é algo que valorizo — conta ele,ao dizer que as festas de família ocorrem em espaços planejados para que todos possam ir.
No ranking dos mais populosos do Rio,o segundo lugar fica com Santa Cruz (249.130 habitantes),seguido de Jacarepaguá (217.462).
— Jacarepaguá teve um crescimento acelerado. Era o décimo em 2000,o sexto em 2010 e o terceiro em 2022 — observa Ana Carolina.
Nada menos que 12.047 domicílios na Barra da Tijuca têm quatro ou mais banheiros. O segundo colocado,o vizinho Recreio dos Bandeirantes,tem 6.010 residências que chegam a esse número.
Contudo,a família do produtor musical Giovanni Schafbenker dispõe de um conforto ainda maior,mesmo para os padrões da Barra. Ele mora em uma casa com nove banheiros,no residencial Rio Mar.
— Meus avós vieram da Tijuca para a Barra em 1983. A casa começou pequena,com quarto,sala,cozinha e um banheiro. Com o tempo,eles foram ampliando e,hoje,temos nove banheiros espalhados pelo terreno,incluindo um lavabo e banheiros na área da piscina e da churrasqueira.
A história da casa é parte de uma transformação gradual. Era um terreno grande que o antigo dono dividiu.
— Ficamos com uma parte. Os banheiros foram construídos aos poucos,conforme a casa e a família foram crescendo. Pelo menos,não tem briga por banheiro — brinca Giovanni,de 26 anos.
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Extremo oposto
Na Zona Sul,de modo geral,o toalete tem o seu valor. Na Lagoa,91,2% dos imóveis têm dois ou mais banheiros,e no Joá,86,4%.
Do outro lado,há 38 domicílios na cidade sem um único banheiro,cinco deles em Santa Cruz. Rocinha,Sampaio e Mangueira têm,cada um,quatro imóveis sem o cômodo.
A letra do clássico que embalou a Sapucaí em 1988 já evidenciava: “O negro dança,o negro joga capoeira / Ele é rei na verde e rosa da Mangueira”. E na comunidade que é berço de uma das escolas de samba mais tradicionais do Brasil,o povo preto continua dominando. Hoje,a Mangueira divide com outra favela,a Cidade de Deus,o título de bairro com mais negros (pretos e pardos) do Rio: 75,3% da sua população.
‘Cheia de sonhos’
Nascida e criada no morro,a jovem Taiane Justino de Lima,de 20 anos,batalha para subir no pódio e por um esporte ainda marcado por preconceitos: o levantamento de peso olímpico.
Em 2019,participou da primeira competição internacional na Argentina. E acabou convidada para integrar a seleção júnior brasileira de levantamento de peso.
Taiane Justino: 'Orgulho de ser uma mulher preta,favelada e cheia de sonhos' — Foto: Leo Martins
— Sempre ouço que levantamento de peso não é esporte para mulher. Tenho orgulho de ser uma mulher preta,favelada e cheia de sonhos — diz.
Além do esporte,a escola de samba também é uma suas paixões e de sua família:
— Minhas primas desfilam como passistas,e minha tia é baiana.
Veja o perfil do seu bairro:
Bairro boêmio,conhecido por seus bares e casas noturnas,a Lapa ostenta hoje o título de lugar onde há a maior parcela de pessoas morando sozinhas. Os lares de solitários chegam a 49,1% do total de domicílios. Muitos deles ocupados por jovens,atraídos por autonomia,privacidade e custo de vida mais baixo. É o caso de Joyce Passos,de 32 anos,que divide seu apartamento com dois cachorros e uma gata.
— Sempre fui muito independente. Saí de casa aos 18. Acho que nunca mais vou querer morar com ninguém. Quanto mais moro sozinha,mais valorizo essa liberdade — conta Joyce,que vive na Lapa há cinco anos.
Já Gabriel Rodrigues,de 21,estudante de medicina,também encontrou na Lapa um ambiente que combina praticidade e custos acessíveis. Natural de Bom Jesus do Itabapoana,no interior do Rio,ele se mudou para a capital há um ano em busca de oportunidades acadêmicas:
— Morando na Lapa,consigo trabalhar,estudar e pagar as contas sem muita preocupação.
Centro e Zona Sul
Também estão na lista de lugares com alto percentual de solitários o Centro e bairros da Zona Sul onde se concentram idosos: Glória,Flamengo,Copacabana,Catete,Leme,Ipanema e Leblon. Copacabana,em números absolutos,é o local com mais domicílios ocupados por uma pessoa: 25.354.
A Associação de Moradores do Flamengo,Parque do Flamengo e Adjacências (AmaFla) tem nos cargos principais duas mulheres: a presidente Isabel Franklin e a vice Lilian Rocha. Tudo a ver com o bairro que representam,que tem a maior proporção de mulheres do Rio: 57,44% de seus 43.099 habitantes.
As duas correm atrás de direitos,em especial para as idosas. Afinal,outra característica do bairro é a de concentrar pessoas da terceira idade.
— Muitas vezes nossas idosas têm que andar pela pista,por causa do excesso de mesas e cadeiras nas calçadas. É preciso bom senso e um olhar mais atencioso com todos — diz a fisioterapeuta Isabel.
Lilian Rocha (à esquerda) e Isabel Franklin: vice-presidente e presidente da Associação de Moradores e Amigos do Flamengo (AmaFla) — Foto: Leo Martins
A bióloga Lilian acrescenta:
— Bares e restaurantes devem ser parceiros. E que haja mais segurança para que mulheres possam sentar numa área pública para conversar com as amigas.
Na contramão
O Rio é majoritariamente feminino: as mulheres são 53,59% da população. Depois do Flamengo,os bairros com mais mulheres,proporcionalmente à população,são Méier,Glória,Humaitá,Copacabana e Tijuca. Já Grumari tem a maior taxa de homens por cem mil: lá,52,7% dos 184 moradores são homens. Além dele,só Joá tem predomínio masculino.
Nas ruas e vielas da frenética Rocinha,vivem 19.707 pessoas entre 15 e 29 anos. A favela,na Zona Sul da cidade e colada em São Conrado,tem a maior proporção de jovens entre os bairros cariocas. Esse grupo representa quase um terço da população da comunidade (27,3%).
Mesmo tendo a juventude como marca,na Rocinha não há um único colégio público de ensino médio. Quem quer ir além do ensino fundamental tem que ir para Ciep estadual Ayrton Senna,já em São Conrado,ou buscar vagas em outras escolas da região.
— A Rocinha tem uma demanda grande também de atividades e trabalho para esses jovens. Fizemos um mapa cultural e encontramos mais de 200 iniciativas,todas comunitárias. A Secretaria da Juventude tem algumas ações,mas não tem uma sede aqui — diz o jornalista Michel Silva,fundador do jornal comunitário Fala Roça.
O IBGE identificou a Rocinha ainda como a maior favela do país,onde vivem 72.021 moradores — número maior que a população de dois terços dos municípios fluminenses.
Entre os bairros com as maiores taxas de jovens,há outros majoritariamente formados por favelas. Entre eles está Manguinhos,que tem 26% da população na faixa etária de 15 a 29 anos. O percentual é o mesmo do Itanhangá,região que mistura mansões e prédios em favelas como Muzema e Tijuquinha,que viveram uma explosão imobiliária nas últimas décadas.
A pouco mais de 20 quilômetros da Barra da Tijuca,Barra de Guaratiba é um lugar de alto potencial turístico,onde a natureza é protagonista. Mar,manguezal e ilhas são atrativos,assim como seus restaurantes especializados em frutos do mar,o Sítio Roberto Burle Marx — primeiro jardim tropical moderno reconhecido pela Unesco como Patrimônio Mundial — e a Pedra do Telégrafo.
Não faltam qualidades a esse bairro com características de interior,que fica numa área de preservação e tem parte de seu território dentro do Parque Estadual da Pedra Branca. No entanto,o bairro desaba no ranking do saneamento. É o segundo pior do Rio: segundo o Censo,61,97% dos seus imóveis não tinham qualquer rede de esgoto em 2022. Ou seja,1.191 dos 1.922 domicílios particulares ocupados jogavam detritos in natura nos cursos d’água,que deveriam ser preservados.
Precariedade
Na frente de Barra de Guaratiba na falta de saneamento só mesmo Grumari,outro bairro paradisíaco,onde 91,68% dos domicílios (62 dos 68) não tinham qualquer rede de esgoto. Perto dali,Vargem Grande também tem que conviver com o saneamento precário (41,95% das casas não contavam com ligação de esgoto). O ranking segue com Alto da Boa Vista e Rocinha,onde os percentuais são de 28,35% e 27,19%,respectivamente.
Conhecido pela beleza de sua orla e cercado por serras cobertas por um verde exuberante,Grumari,é o menor bairro do Rio em população e o quarto pior colocado no Índice de Progresso Social (IPS),da prefeitura. O Censo 2022 mostrou outro dado contrastante nesse paraíso: o bairro tem o maior percentual de analfabetos do Rio. Dos 184 moradores,14 (7,61%) não conseguem escrever um bilhete,mínimo definido pelo IBGE para classificar uma pessoa como alfabetizada.
Favelas na lista
O segundo colocado em analfabetismo é o Caju,na Zona Portuária,que já foi um bairro nobre,mas hoje está cercado por um complexo de favelas. Lá,5,27% não sabem ler nem escrever. Na terceira colocação,com 4,68%,estão Maré e Rocinha,empatadas.
O Campo dos Afonsos é um bairro pequeno da Zona Oeste,conhecido,sobretudo,por sua base aérea. Tem apenas 2.106 moradores,com o maior número proporcional de crianças (até 9 anos) da cidade. São 399,o que representa 18,9% do total de habitantes.
A demógrafa Ana Carolina Bertho chama atenção para outro fato ocorrido no Campo dos Afonsos,que merece ser estudado: o crescimento populacional.
— De 2000 para 2010,o o bairro perdeu população,que foi de 1.515 para 1.365 pessoas (menos 10%). Mas,de 2010 para 2022,a população local aumentou 54% — compara.
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Em seguida no ranking dos bairros com maior taxa de crianças está Acari. Dos 29.673 moradores do lugar,4.946 (16,6%) têm até 9 anos.
Outras áreas pobres,a maioria favelizada,completam a lista dos locais com mais crianças. É o caso de Gericinó,Maré,Jacarezinho,Mangueira e Manguinhos.
Queda na fecundidade
Por outro lado,bairros da Zona Sul e com concentração de pessoas que vivem sozinhas são os com as menores percentuais de crianças. Entre eles estão Glória,Lapa,Centro,Joá,Copacabana e Flamengo.
— Estudos mostram que,a partir dos anos 1960,ficou evidente a queda da fecundidade no estado. Com mais escolaridade,as pessoas buscam posição no mercado de trabalho e têm menos filhos — explica Ana Carolina.