O presidente francês,Emmanuel Macron,ao lado da esposa,Brigitte,visitam a catedram de Notre-Dame — Foto: AFP
GERADO EM: 29/11/2024 - 16:30
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“Notre-Dame é boa e velha: talvez ainda vejamos ela enterrar Paris,cujo nascimento ela testemunhou”,disse o poeta Gérard de Nerval (1808-1855) mais de 160 anos antes de o mundo assistir,em abril de 2019,às chamas devorarem uma das maiores catedrais do Ocidente,tombada como patrimônio mundial da Unesco. Menos de 24 horas após o incidente que deixou parisienses e estrangeiros atônitos,o presidente francês,anunciou que desejava reconstruir a catedral “mais bonita do que antes”,um projeto ambicioso que contou com a participação de mais de 250 empresas e artesãos,e um custo de quase 700 milhões de euros (R$ 4,2 bilhões),financiado por doações de 150 países. O prazo para as obras terminarem se encerra no próximo sábado,quando o local deverá ser reaberto com uma grande cerimônia.
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Exemplo da arquitetura gótica medieval,a catedral tornou-se sinônimo da própria trajetória francesa. Foi lá que Henrique VI da Inglaterra (1421-1471),em 1431,foi proclamado rei da França; onde Napoleão Bonaparte (1769-1821),em 1804,foi coroado imperador,e onde o ex-presidente francês Charles de Gaulle (1890-1970) liderou uma cerimônia de Ação de Graças em 1944,após a Libertação de Paris durante a Segunda Guerra Mundial. Talvez isso explique,ao menos em parte,segundo analistas,o motivo pelo qual Notre-Dame ainda fascina diferentes nações,mesmo aquelas que não têm tradição cristã.
Para Thomas Burman,diretor do Instituto Medieval da Universidade de Notre Dame,nos Estados Unidos,a construção cativa por estar em uma das cidades mais turísticas do mundo,mas também reflete o “fascínio duradouro pela Idade Média”,indicado pela cultura popular “medieval” de livros,filmes,séries de TV que são tão populares na atualidade.
— As catedrais são apresentadas como símbolos de um período muito rico,sofisticado e artisticamente avançado na História da Europa,e por isso gerações de estudantes foram educadas nesse contexto. Ninguém ensina a Idade Média sem mostrar muitas imagens de vitrais e falar sobre a arquitetura gótica — disse Burman ao Catholic Review. — O que diferencia Notre-Dame de outras catedrais góticas,inclusive construções melhores,como as de Amiens e Chartres,na França,ou Colônia,na Alemanha,é que elas não estão em um destino tão turístico como Paris.
Pessoas que trabalharam diretamente na reconstrução de Notre-Dame escutam o presidente Emmanuel Macron discursar — Foto: Sarah Meyssonnier / POOL / AFP
Notre-Dame já foi salva antes — não por bombeiros,mas pela literatura. Isso porque o sucesso internacional do romance O Corcunda de Notre-Dame,de Victor Hugo,foi crucial para inspirar a restauração da catedral após a Revolução Francesa. Ao GLOBO,Michael Davis,especialista em Idade Média e arquitetura gótica do Mount Holyoke College,nos EUA,e membro do conselho da organização Friends of Notre-Dame de Paris,que arrecadou fundos para a restauração da catedral,disse que o livro ajudou a imortalizar a construção como “um documento ou crônica da França,da ciência e das artes”.
— Ao longo dos últimos oito séculos,a catedral e suas monumentais torres gêmeas se tornaram uma imagem que identifica Paris e simboliza a França como nação. Pense nos planos de abertura de O Corcunda de Notre-Dame,desde a versão silenciosa de 1923 até o filme animado da Disney de 1996,todos começam com a Notre-Dame. Como resultado,sentimos que conhecemos a catedral. Como público global,todos nós estávamos lá em 15 de abril de 2019,assistindo ao terrível colapso da torre central e acompanhando os esforços heroicos dos bombeiros. Essa experiência compartilhada e o lugar especial da Notre-Dame em um panorama histórico,mental e visual coletivo,creio eu,explicam a extraordinária mobilização de recursos e esforços para sua restauração.
Quando Hugo escreveu a obra,a arquitetura gótica havia perdido prestígio e estava sendo demolida para dar lugar a estilos mais modernos,declarou Thibault Schilt,professor de francês no College of the Holy Cross,ao portal católico. Segundo ele,apesar do fervor anticatólico da Revolução Francesa,Hugo buscava lembrar aos franceses que Notre-Dame era “uma joia que precisava ser protegida,reverenciada e respeitada”. O livro foi publicado em inglês em 1833 e,tanto na França quanto no exterior,disse o especialista,contribuiu para o “renascimento da catedral na mente das pessoas” — algo que foi potencializado ainda na segunda metade do século XIX,com a restauração da igreja em estilo gótico pelo famoso arquiteto Eugène Viollet-le-Duc (1814-1879).
— As lógicas de restauro que conhecemos datam apenas do século XIX em diante. Antes da Revolução Francesa,a Notre-Dame de Paris sofreu pequenas intervenções ao longo dos séculos,em tempos em que não existia a preocupação de preservar feições originais ou buscar uma unidade de estilo — disse Diomedes Oliveira,doutor em história pela Universidade Federal de Pernambuco,AO GLOBO. — Para Viollet-le-Duc,por exemplo,o restauro não era apenas a busca por uma unidade estilística ou pelo “retorno” do prédio às suas feições originais. Em vez disso,ele deveria proporcionar novas intervenções à edificação,aproveitando as técnicas e materiais da época.
Para Oliveira,o restauro deve levar em consideração não a busca pelo edifício “original”. Ele acredita que é preciso estar atento a todas as intervenções de um prédio “com tantos séculos de idade”,apresentando um restauro que possibilite as novas gerações a enxergar a verdadeira história daquele monumento,“com suas mudanças,permanências e particularidades”. A visão contrasta com a do arquiteto-chefe do projeto de reconstrução da catedral,Philippe Villeneuve,que em 2019 chegou a ameaçar renunciar ao cargo se a construção fosse reformada com um toque “contemporâneo”,como desejava Macron. Sua opinião prevaleceu,e no mesmo ano o Parlamento francês aprovou uma lei exigindo que a catedral fosse restaurada ao seu “último estado visual conhecido”.
— Não se trata apenas de como reconstruir,mas também de por que reconstruir. Por que usar este material,esta técnica,esta estrutura? Estamos intervindo em uma obra-prima. É icônica,como a Mona Lisa. Como você interviria na Mona Lisa? — questionou Villeneuve em entrevista ao Wall Street Journal em 2020. — Devemos reconstruir a catedral com precaução,infinito respeito e,acima de tudo,não devemos deixar nossa marca nela. Devemos ser muito modestos.
Cinco anos mais tarde,a agulha,uma torre alta e pontiaguda que desabou no incêndio,hoje está erguida novamente,idêntica àquela projetada no século XIX. As paredes,enegrecidas pelo fogo e pelo tempo,recuperaram o brilho. E os vitrais,que não foram danificados pelas chamas,foram limpos e restaurados. Ao entrar na catedral,fiéis e visitantes agora encontrarão um eixo central e móveis litúrgicos novos e minimalistas. A diocese e o governo francês esperam receber entre 14 milhões e 15 milhões de visitantes após a reabertura,que incluirá um plano de circulação redesenhado e um sistema de reservas online.
Macron fará discurso: Antes de reabertura após incêndio,interior da Catedral de Notre-Dame será exibido na TV
O público ainda verá os grandes “mays” restaurados,grandes pinturas destinadas ao altar que eram encomendadas anualmente a grandes artistas,entre 1630 e 1707. Será possível ver também o sino usado no Stade de France durante os Jogos Olímpicos de 2024 e o grande órgão,instrumento de três séculos que teve seus oito mil tubos desmontados após o incêndio. No caso deste último,a reinauguração deverá ser sentida de maneira especial pela brasileira Luciana Lemes,de 29 anos,que trabalhou na equipe de restauração do órgão em 2023 e foi uma das responsáveis por afinar o instrumento neste ano.
— Nós ajudamos a restaurar a fachada,a parte onde a gente vê todos os tubos. Foi a primeira vez que ela foi restaurada desde que foi instalada,e eu me senti realizada. Feliz de ser brasileira e estar aqui,representando o meu país — relembrou ela,que nasceu e cresceu em Londrina,no interior de São Paulo,e hoje mora na França. — Eu vim de família simples,de um bairro periférico. Então,me sinto feliz por não ter desistido,apesar de muitos terem falado que essa profissão não era coisa de mulher.
A brasileira Luciana Lemes,trabalhou na equipe de restauração do órgão da catedral de Notre-Dame e foi uma das responsáveis por afinar o instrumento — Foto: Arquivo pessoal
Para a restauradora Gilcy Azevedo,ex-diretora da Coordenação de Preservação da Câmara dos Deputados,depois de todos esses anos,“a França mostrou que é possível reerguer a memória”:
— [A catedral] tem uma representação muito significativa. É uma felicidade muito grande saber que esse monumento volta ao seu estado original,para que as gerações futuras tenham o privilégio de entender tudo que aconteceu na história — disse ao GLOBO. — Ela faz parte da memória de um povo.
*Leonardo Marchetti é estagiário sob supervisão de Leda Balbino