Protesto conta o PL 1904 no Rio de Janeiro — Foto: Domingos Peixoto / Agência O Globo
GERADO EM: 21/06/2024 - 00:05
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Alguém já disse que,se os homens parissem,o aborto seria um sacramento. Apresso-me,portanto,em pedir licença às mulheres para pisar em seu solo sagrado. Nenhum dilema humano e seu conflito ético correspondente têm solução óbvia. No Brasil,o aborto é crime,exceto em três circunstâncias: risco de morte da gestante,abuso sexual,fetos anencéfalos. As duas primeiras circunstâncias estão previstas na lei desde 1940. A terceira decorre de julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF),em 2012,estabelecendo que é permitido interromper a gestação quando o feto é anencéfalo,situação que implica a não sobrevivência da criança recém-nascida.
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Embora a legislação seja de 1940,somente em 1989 o poder público ofereceu condições para que uma mulher que tivesse sofrido abuso sexual resultando em gravidez exercesse o direito ao aborto. Durante todo esse período,o aborto legal era realizado em clínicas e hospitais particulares,atendendo evidentemente uma classe pagante,deixando as mulheres pobres à mercê de clínicas clandestinas,o que afetou os índices de mortalidade de gestantes.
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Por trás dessa inaceitável realidade se escondem machismo,misoginia,classismo,moralismo e oportunismo. Mas também o fato de o dilema em relação ao aborto ser uma questão atávica,de a relação com a vida estar impressa na alma humana. As mulheres que praticam o aborto e os agentes que o realizam sabem que,na vida humana,não se toca impunemente.
Sou contra o aborto. A proteção da vida humana,inclusive do nascituro,é um imperativo ético da fé cristã. Creio,entretanto,que a criminalização do aborto não é uma opção aceitável para inibir ou conter sua prática. A lei,qualquer que seja ela,é insuficiente para dar conta da complexidade da alma,das relações sociais e dos sofrimentos causados pelo ser humano fraturado por sua condição de imperfeição. O teólogo alemão Bernhard Häring,um dos mais renomados moralistas católicos,admite o aborto também quando o dano moral e psicológico causado pelo estupro impossibilita a mulher de aceitar a gravidez.
— Nem mesmo a Igreja tem o direito moral de exigir sempre de seus fiéis atitudes heroicas — comenta Frei Betto.
O Evangelho de João registra o caso de uma mulher flagrada em adultério,trazida até Jesus. Diante da massa revolta exigindo o cumprimento da lei religiosa que mandava apedrejar quem cometesse tal pecado,Jesus afirma seu discernimento,que aponta caminhos para a redenção pessoal e social:
— Atire a primeira pedra quem não tem pecado.
A solidariedade é possível apenas aos que respeitam os limites da condição humana,suas impossibilidades de viver à luz de uma ética ideal,e acreditam de fato que nem o Estado nem a Igreja — em suas mais amplas representatividades — têm o direito de penetrar a consciência humana,que detém a prerrogativa inalienável de deliberar moral e eticamente sobre seu destino.
Uma sociedade humanizada não se constrói com a observância literal da lei,mas com atos repetidos de misericórdia e compaixão — justiça se faz com amor. De um lado,o tribunal divino,onde o justo juiz julga com amor e graça. Do outro,ficamos nós,irmanados em nossa condição de imperfeição,solidários em nossos sofrimentos,recusando-nos a promover apedrejamentos ou a criminalizar as vítimas de tantos pecados,os próprios e os estruturais,a teia de transgressões em que nos ferimos mutuamente. O sábado foi feito por causa do homem,não o homem por causa do sábado,ensinou Jesus.
*Ed René Kivitz,teólogo,é pastor da Igreja Batista de Água Branca,São Paulo