Presidente russo,Vladimir Putin,culpou o Ocidente por pressões que levaram o país a disparar um míssil balístico contra a Ucrânia — Foto: Vyacheslav Prokofyev/AFP
GERADO EM: 24/11/2024 - 17:38
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A guerra na Ucrânia,de conflito “regional”,adquiriu “elementos” de um conflito “global”. Foi essa a mensagem de Putin,em 21 de novembro,quando a Rússia lançou um míssil balístico hipersônico contra a cidade ucraniana de Dnipro. A ação,uma resposta à autorização de Biden ao uso de mísseis Atacms americanos contra alvos na retaguarda profunda russa,segue-se à mudança na doutrina nuclear da Rússia.
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A nova doutrina foi formulada há dois meses,como réplica à audaciosa incursão ucraniana num saliente da região de Kursk,a invasão inaugural de um território russo desde a Segunda Guerra Mundial. Sua oficialização,porém,deu-se logo após a autorização de Biden.
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A mudança não é insignificante. De acordo com a doutrina tradicional,a Rússia só usaria armas nucleares contra um Estado nuclear e,exclusivamente,diante de uma ameaça existencial à sobrevivência do Estado russo. A nova versão admite o uso da maior das armas no caso de ameaça à “soberania” e “integridade territorial” da Rússia — até mesmo contra um inimigo não nuclear que recebe apoio militar de um Estado nuclear. Traduzindo: em tese,a Ucrânia poderia ser alvo de bombardeio nuclear em retaliação à invasão do saliente de Kursk.
O míssil balístico que atingiu Dnipro transportava carga explosiva convencional,mas poderia ter sido equipado com ogivas nucleares. Segundo Putin,“atualmente inexistem meios para interceptar essa arma”,que “ataca alvos à velocidade de 10 Mach”. O recado deve ser lido em associação com a nova doutrina nuclear — e seu destinatário chama-se Trump.
Um Biden irredutível passou meses insistindo no veto ao uso dos Atacms contra território russo,o que contribuiu para fragilizar ainda mais a posição ucraniana no campo de batalha. Sua autorização derivou,na superfície,da presença de tropas norte-coreanas no front de Kursk — mas,de fato,constitui uma tentativa tardia de evitar a deterioração das defesas da Ucrânia na hora em que Trump cumpriria a promessa eleitoral de forçar negociações de paz.
Atribui-se a Trump,com fortes motivos,a intenção de empurrar a Ucrânia para uma “paz cartaginesa” — algo próximo à capitulação. Mike Waltz,o conselheiro de Segurança Nacional indicado pelo presidente eleito,qualificou a autorização de Biden como parte de uma “escalada”. Donald Trump Jr. e Marjorie Taylor Greene,duas vozes ligadas ao núcleo ideológico de Trump,alertaram sobre o risco de uma Terceira Guerra Mundial,repetindo desavergonhadamente linhas discursivas invocadas inúmeras vezes pelo Kremlin. O próprio Trump manteve inescrutável silêncio.
O conceito de dissuasão,desenvolvido na Guerra Fria,baseava-se na ideia de que o arsenal nuclear das duas superpotências dissuadia o rival de promover um primeiro ataque. Em sua guerra imperial na Ucrânia,Putin engaja-se numa perigosa extensão do conceito: a ameaça de uso das armas nucleares contra alvos ucranianos serviria para dissuadir a Otan de fornecer sistemas avançados de armas convencionais ao país invadido.
O blefe rendeu frutos,persuadindo Biden a postergar,sucessivamente,o fornecimento de blindados modernos,mísseis Himars e Atacms,caças de ataque F-16. A mudança na doutrina nuclear e o lançamento do míssil contra Dnipro intensificam essa estratégia,no intervalo da transição de governo nos Estados Unidos.
O presidente americano que assume em janeiro está numa encruzilhada. Um caminho é a “paz cartaginesa”: a Ucrânia não só entregaria territórios à Rússia,mas seria desmilitarizada e neutralizada. Nessa hipótese,seria convertida em presa fácil da próxima invasão russa,e Trump inauguraria seu governo com uma humilhação nacional de grande magnitude. O caminho oposto é patrocinar a paz que Biden não ousou desenhar: o intercâmbio da cessão de territórios à Rússia pela inclusão da Ucrânia na Otan.
O caminho escolhido por Trump determinará,em larga medida,os contornos da ordem geopolítica global. A “paz cartaginesa” deflagraria uma crise existencial na Otan. A admissão oficial da Ucrânia na Otan representaria uma derrota estratégica do neoimperialismo russo.