Fotos rasgadas do ex-ditador sírio Bashar al-Assad jogadas no chão do Palácio Presidencial em Damasco — Foto: Ben Hubbard/The New York Times
GERADO EM: 17/12/2024 - 16:54
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No domingo,uma semana após a queda relâmpago do regime de Bashar al-Assad na Síria,o jornal britânico Financial Times revelou que o homem que comandou com mão de ferro o país por mais de duas décadas transferiu US$ 250 milhões (R$ 1,5 bilhão,em valores atuais) para a Rússia,em uma operação realizada pelo Banco Central entre 2018 e 2019.
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Uma fonte citada pelo jornal afirmou que a transferência pagou carregamentos de trigo,serviço de impressão de cédulas e “despesas militares”,e explicou que foi realizada com notas de US$ 100 (R$ 609) e €500 (R$ 3.195,55) por causa das sanções internacionais: segundo ela,“quando um país está completamente cercado,ele só tem dinheiro em espécie” para fazer seus pagamentos.
Como esperado,não há registros oficiais disponíveis sobre a transação,mas analistas suspeitam que ela possa fazer parte de um esquema amplo e antigo para espalhar a fortuna acumulada pela família Assad desde a chegada do pai,Hafez,ao poder nos anos 1970. Uma rede de propriedades,contas em paraísos fiscais e ligações com negócios pouco lícitos,que vão desde lavagem de dinheiro até tráfico de drogas.
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E as novas autoridades no comando em Damasco não escondem o desejo de reaver esse dinheiro.
— Haverá uma caça aos ativos do regime internacionalmente —disse Andrew Tabler,um ex-funcionário da Casa Branca ligado à investigação sobre os bens da família Assad,em entrevista ao Wall Street Journal. — Eles tiveram muito tempo antes da revolução para lavar seu dinheiro. Eles sempre tiveram um Plano B e agora estão bem equipados para o exílio.
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Sírios celebram a queda do governo de Assad — Foto: OMAR HAJ KADOUR / AFP
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Sírios celebram a queda do governo de Assad — Foto: OMAR HAJ KADOUR / AFP
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Em declaração por vídeo,o líder do grupo jihadista Hayet Tahrir al-Sham (HTS),Ahmed al-Sharaa,antes conhecido como Abu Mohammed al-Jawlani,pediu ao público que comemorasse a queda do regime de Assad sem disparar tiros — Foto: MUHAMMAD HAJ KADOUR / AFP
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Multidões de sírios levantando a bandeira da era da independência,usada pela oposição desde o início do levante em 2011,enquanto comemoram a queda de Bashar al-Assad no início desta semana na praça central Umayyad,em Damasco — Foto: OMAR HAJ KADOUR / AFP
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Sírios pisam em banner gigante do presidente deposto,Bashar al-Assad — Foto: Sameer Al-DOUMY / AFP
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— Quero parabenizar o povo sírio pela vitória da abençoada revolução. E convido-os a tomar as ruas para expressar sua alegria sem disparar balas e assustar as pessoas — disse Sharaa,cujo grupo liderou a ofensiva rebelde que derrubou Assad — Foto: MUHAMMAD HAJ KADOUR / AFP
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Multidões de sírios levantando a bandeira da era da independência,em Damasco — Foto: Omar HAJ KADOUR / AFP
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Sírios celebram a queda do governo de Assad — Foto: OMAR HAJ KADOUR / AFP
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Vista aérea da Praça Umayyad,em Damasco,nesta sexta-feira (13) — Foto: OMAR HAJ KADOUR / AFP
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Sírios celebram a queda do governo de Assad — Foto: AAREF WATAD / AFP
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Sírias com a bandeira da era da independência,usada pela oposição desde o início da revolta em 2011,pintadas nos seus rostos posam para uma fotografia durante as celebrações da derrubada do presidente Bashar al-Assad,esta semana,na Praça Umayyad,no centro de Damasco — Foto: OMAR HAJ KADOUR / AFP
O primeiro passo será descobrir quanto dinheiro o ex-ditador,hoje asilado na Rússia,realmente tinha. Um relatório do Departamento de Estado dos EUA apontava,em 2022,que a fortuna dos Assad,incluindo bens e participações em negócios,poderia ser de até US$ 12 bilhões (R$ 73,04 bilhões). O então ditador teria à disposição pessoal algo entre US$ 1 bilhão (R$ 6,09 bilhões) e US$ 2 bilhões (R$ 12,7 bilhões) — em 2021,o PIB da Síria,onde mais de 70% pessoas vivem abaixo da linha da pobreza,foi de US$ 9 bilhões (R$ 54,78 bilhões),segundo o Banco Mundial.
Estimativas independentes eram mais generosas,e sugeriam que ele teria “toneladas” em barras de ouro,uma lista de bens de até US$ 22 bilhões (R$ 133,91 bilhões),e até uma rede escondida de contas bancárias,negócios obscuros,aeronaves e apartamentos de luxo estimada em US$ 122 bilhões (R$ 742,60 bilhões),somados os números de toda a extensa família Assad.
Ditador deposto da Síria,Bashar al-Assad,e a ex-primeira-dama,Asma,durante cerimônia em Damasco — Foto: Louai BESHARA / AFP
Ao mesmo tempo,Assad e sua família passavam a imagem de que sua vida não era opulenta. Em uma hoje infame matéria da revista Vogue,em 2011,Asma al-Assad,a primeira-dama,foi chamada de "Rosa do Deserto",cujo estilo “não é o deslumbramento da alta-costura e do brilho do poder do Oriente Médio,mas uma deliberada falta de adornos”. Após a queda do regime,manifestantes que invadiram a residência presidencial se depararam com roupas e acessórios de grifes famosas,e automóveis de luxo na garagem.
“Devido à sua [de Assad] influência indiscutível sobre o setor público como chefe de Estado,ele tinha poder irrestrito para dirigir e direcionar os negócios do Estado para as empresas que ele controla por meio de suas frentes de negócios",afirmaram,em artigo publicado em agosto pelo Brookings Institute,o economista político sírio Karam Shaar e o cientista político Steven Heydemann.
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Uma engrenagem central na máquina financeira vinha do lado da família da mãe de Assad,Anisa Makhlouf.
Mohammad Makhlouf,genro de Hafez al-Assad,foi encarregado de supervisionar o setor de importação de tabaco,extremamente lucrativo,e mais tarde passou a assessorar Bashar e receber comissões de empresas de construção civil. No começo do século,ele passou suas responsabilidades a um de seus filhos,Rami. Em entrevista ao Wall Street Journal,William Bourdon,advogado de direitos humanos responsável por investigar alguns dos bens da família do ex-ditador,afirmou que a função dos Makhlouf era “fazer dinheiro para financiar o regime e a família presidencial”.
Nos anos 2010,Rami e suas empresas,que incluíam a gigante da telefonia SyriaTel,chegaram a responder por cerca de 60% da economia do país,mas sua sorte virou em 2020,quando perdeu o controle das companhias,de boa parte de sua fortuna estimada em US$ 10 bilhões (60,9 bilhões),e acabou preso — para Muhannad al-Hajj Ali,pesquisador do Centro Carnegie para o Oriente Médio,sua queda ocorreu em meio a uma disputa com Asma al-Assad,como afirmou em 2020 ao site Arab News.
Rebeldes sírios mostram recipiente com pílulas de captagon,encontradas em depósito do governo no Leste da Síria — Foto: Bakr ALKASEM / AFP
Em uma frente ainda mais ilegal,o regime (e Assad) engordavam seus cofres através do tráfico de uma das drogas mais populares do Oriente Médio,o captagon,similar à anfetamina e que,segundo um relatório do Observatório de Redes Políticas e Econômicas,publicado no ano passado,movimentou mais de US$ 7 bilhões (R$ 42,61 bilhões) entre 2022 e 2023. À frente do “negócio” estava um irmão de Bashar,Maher,comandante de uma brigada do Exército — para lavar o dinheiro,ele investiu até em uma fazenda de chá na Argentina.
Se estimar o tamanho da fortuna de Assad e seus aliados é tarefa complexa,recuperar esses bens,em boa parte obtidos com o desvio de recursos do Estado sírio,será ainda mais difícil. O dinheiro foi enviado para paraísos fiscais,como a Suíça e as Ilhas Cayman,ou para portos considerados seguros,como a Rússia. Como apontou o Financial Times,o Departamento de Estado acusou um banqueiro sírio,Mudalal Khouri,de facilitar grandes movimentações para instituições russas através de empresas de fachada e voos carregados de notas de dólar e euro.
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As propriedades,com raras exceções,foram compradas em países pouco afeitos a cumprir pedidos ocidentais de arresto de bens,como Rússia e Emirados Árabes Unidos — uma das raras apreensões ligadas aos Assad ocorreu na França,em 2019,quando a Justiça local ordenou o congelamento de € 90 milhões (R$ 575,39 milhões) em propriedades de Rifaat al-Assad,tio do ex-ditador,acusado de lavagem de dinheiro. Uma lição que aprendida pelo clã.
— Assad sempre soube que nunca seria uma companhia aceitável em,digamos,Paris — disse,em entrevista ao Financial Times,David Schenker,ex-secretário assistente de Estado para assuntos do Oriente Médio. — Ele não iria comprar prédios de apartamentos lá,mas também sabia que se isso acabasse,acabaria mal. Então eles tiveram anos para tentar obter dinheiro e criar sistemas que seriam refúgios confiáveis e seguros.
E a história recente não traz boas perspectivas para os que tentam encontrar a fortuna de Assad: segundo as Nações Unidas,cerca de US$ 54 bilhões (R$ 328,69 bilhões) em bens,incluindo ouro,jóias,aeronaves e dinheiro depositado,foram roubados do Estado líbio por aliados e parentes do ditador deposto Muammar Gaddafi — até hoje,pouco mais de US$ 100 milhões (R$ 609 milhões) foram recuperados.
— O regime teria que levar seu dinheiro para um porto seguro no exterior para poder usá-lo para obter uma vida boa — concluiu Schenker,em uma referência a Assad,mas que também serve para um numeroso grupo de autocratas ao redor do planeta.